11.29.2011


HOMEM DENTRO DO APARELHO SE FOTOGRAFA

“O cérebro eletrônico comanda / Manda e desmanda / Ele é quem manda / Mas ele não anda”
Gil, 1969

Relato Pessoal Nº1

...andei trabalhando em função do aparelho, não somente do aparelho mercadológico - sistema capitalista geo-referenciado, burgueses x proletários, “time is money”, luz, água, aluguel – como também, fotógrafo que sou, servindo ao aparelho fotográfico, e nesse sentido, sempre com muito esforço, buscando motivações nas demandas da vida para suportar tal condição servil. Até que re-li Flusser e voltei a pensar em uma possível alforria

(...)


PRÓlogo.POÉtico.TEÓrico

Pode-se dizer que a imagem fotográfica existe em potencia em cada aparelho fotográfico

Pode-se dizer também, que as imagens produzidas no interior do aparelho podem ser reproduzidas ao infinito.

Portanto, o aparelho fotográfico é um aparelho reprodutor em potencial

A imagem, enquanto potencia, é um feto,

[ser em processo de desvirtualização ]

A luz é o sopro divino. Queima os sais de prata. Recorta o indivisível, o ininterrupto.

Vida a mais uma fotografia,

Uma nova inscrição na duração.

Um novo ente.

Único.

1, 2, 3 Pré(supostos)

Segundo Barthez toda fotografia atesta o isto foi de algo. Pierce parece concordar ao classificar a imagem fotográfica como signo índice, bem como Schaeffer que defini a fotografia como impressão de traços do visível. A imagem fotográfica é portanto uma relíquia, um resquício do passado dobrado no presente. A fotografia existe na medida em que traz a tona o que não existe mais.

Breve direcionamento em 2 parágrafos

As imagens fotográficas que compõe esta instalação atestam e comprovam uma invasão, atestam e comprovam a presença do homem-invasor dentro do aparelho. Portanto tais imagens não se encerram em si mesmas, pois valem justamente na relação com o que está fora do quadro, com o extra campo, especificamente, na relação que possuem com seu próprio processo poético de feitura, do qual são registro fiel e verdadeiro.
É preciso que fique claro que este trabalho não pretende lançar o espectador a uma analise formal, presa a bi dimensionalidade que constitui as imagens que compõe a instalação, e sim elevar a fotografia ao campo do pensamento, sendo os aspectos formais uma plataforma de lançamento para uma discussão conceitual sobre a linguagem fotográfica e suas relações com as tecnologias industriais e humanas.

O Jogo ou O (Contra)Golpe

Somente um jogo verdadeiramente contra o aparelho será capaz de libertar o homem da condição servil na qual se encontra. Aqui pois, a primeira jogada é a eliminação da câmera.
O aparelho fotográfico [caixa escura com dispositivo que controla a entrada de luz a partir de um orifício oposto a um material foto-sensível; papel, película] foi violado. O homem que invade o aparelho abre um sistema aparentemente fechado. Joga para além da programação interna do dispositivo, conquista alforria, molda o aparelho, se insere nele, e de dentro se auto-retrata.
“No auto retrato...” segundo Denis Roche, “...uma foto com disparador automático... engloba de qualquer forma magicamente todo o tempo da operação... Como se o instantâneo tivesse captado o tempo bastante longo do enquadramento, o deslocamento... Tudo isso é captado...” Aqui, o tempo da operação é correspondente ao tempo da ocupação, entretanto aqui não há disparador, não a enquadramento, não há nem como enxergar dentro da caixa preta. O que o instantâneo capta é a própria ocupação humana, as movimentações do invasor.
A câmera escura em “homem dentro do aparelho” é a sala-preta-laboratório. Dois plugs, macho e fêmea, ativam o cordão elétrico-umbilical. A luz preenche a escuridão, queima os haletos de prata que deflagram em fotograma a presença do emissor. O referente aqui é o próprio homem, dentro de um espaço-tempo muito específico. O homem em uma impressão por travessia, entre a física/ótica e a química, entre uma luz incandescente e 20 papeis foto-sensibilizados. No lugar do Homo-faber, acorrentado a pressa cotidiana, surge o homo-ludens como terceiro elemento viabilizador da linguagem fotográfica. Jogando contra o aparelho. Jogando de dentro do aparelho.
O homem, ao entrar no aparelho elimina o quadro, o visor, a visão. A caixa preta é escura, e o tato é o sentido guia. O homem se choca com os sais de prata, deixa seu rastro a cada passo. Cada pegada deixa seu traço na superfície foto-sensível. O homem se deita nú, no útero escuro e calmo da fotografia e como um feto que toma conscientemente as rédeas em meio a uma sessão de ultrasonografia, o fotografo se auto-retrata, no útero da imagem fotográfica, na metáfora aberta e possível do aparelho fotográfico moderno. Uma sala escura, uma luz encandescente, uma extenção elétrica, 20 papeis foto-sensibilizados e o homem, com seus “botões de carne e osso”.

Notas à Gosto para Termos em Itálico

1. Enquanto possibilidade latente, na condição de vir-a-ser
2. Segundo Vilem Flusser em a Filosofia da Caixa Preta, aparelhos são produzidos, e seus produtores inscrevem uma programação que norteará seu funcionamento, bem como sua relação com o homem, “o estar programado é que o caracteriza” sendo as fotografias “realizações de algumas das potencialidades”
3. Walter Benjamim posiciona a fotografia como técnica determinante na instauração da reprodutibilidade técnica, tanto no campo da arte quanto da comunicação
4. Significa o mesmo que dizer ser em atualização que é “criação, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e finalidades, ou seja, é o processo no qual algo passa de potência a ato. “a arvore está virtualmente presente na semente”. Pierre Levy, em O que é o Virtual?
5. Indivisivel ai trata da duração, conceito bergsoniano exposto em seu livro Memória e Vida no qual o “estado é a própria mudança” e por tanto, o tempo não pode ser analisado quantitativamente, pois toda “fixidez não passa de um arranjo efêmero entre mobilidades”
6. Ininterrupto trata do devir como jorrar infinito e constante que empurra o passado roendo o presente. “... é ao mesmo tempo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos. Tal é a simultaneidade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao presente”. Gilles Deleuze em A Lógica do Sentido.
7. “Uma fotografia sempre se encontra no extremo desse gesto; ela diz: isso é isso, é tal!”, “... a fotografia sempre traz consigo seu referente...” Roland Barthez em A Camera Clara.
8. “Índices são signos que mantem ou mantiveram num determinado momento do tempo uma relação de conexão real, de contigüidade física, de co-presença imediata com seu referente” Phillip Dubois em O ato Fotográfico
9. “... a impressão é um traço que um corpo físico imprime sobre ou em outro corpo físico”. Jean-Marie Schaeffer em A Imagem Precária.
10. “Aparelho é brinquedo e não instrumento no sentido tradicional. E o homem que o manipula não é trabalhador, mas jogador: não mais homo faber, mas homo ludens” Flusser em A Filosofia da Caixa Preta,
11. “... qualquer fotografia é um golpe (uma jogada)... temos objetivos... passamos ao ato, e vemos o que ocorre depois do golpe (da jogada) (do corte). Eis o jogo.” Phillipe Dubois em O Ato Fotográfico.

(...)

Relato pessoal nº2

Continuo servo do(s) aparelho(s), há que se sobreviver na selva, entretanto, um contra-golpe foi lançado, o jogo está sempre em aberto, o “homem dentro do aparelho” deixou sua marca, ponto para a tecnologia humana. Há agora que se decifrar o movimento do placar, e de quantos pontos se constitui uma partida. O que posso afirmar ao fim desse discurso-imagem-poesia é que não se trata de ganhar ou perder, e sim de continuar tentando, pois a arte é um tal fazer “enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer” Luigi Pareyson, Problemas de Estética, 2009.

Hugo Nascimento, estudante e fotógrafo liberto, 2011

(este trabalho participou da 20ª Edição da Mostra CCBEU Primeiros Passos, em Belém, 2011)

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